Julio Furtado é mestre e doutor em educação, professor, escritor, palestrante e especialista em Programação Neurolinguística. Além do seu currículo extenso, uma pessoa super acessível e engajada com a educação. Dentre os assuntos de sua especialidade, estão gestão escolar e desenvolvimento de lideranças. Por isso, o Julio foi o escolhido pela nossa equipe para falar de um tema polêmico: o bullying nas escolas.
Após frequentes casos dessa violência nas mídias, buscamos entender qual o papel do educador nesse contexto e de que maneira o bullying afeta o desenvolvimento dos educandos. Confira essa entrevista completa com Julio Furtado:
1- O que caracteriza o bullying? É uma ação que precisa ser contínua, como o nome no gerúndio indica, ou qualquer tipo de “brincadeira” de mal gosto, como apelidos ou fazer alguém passar vergonha já pode ser caracterizado como bullying, mesmo que ocorra só uma vez?
Julio Furtado: Bullying é uma agressão intencional, verbal ou física, repetitiva, feita por um ou mais alunos contra um ou mais colegas, em geral na presença de outros que atiçam e torcem, constituindo uma espécie de plateia. O termo bullying tem origem na palavra inglesa bully, que significa valentão, brigão. Em português, é entendido como ameaça, tirania, opressão, intimidação, humilhação e maltrato. Agressões esporádicas não podem ser consideradas bullying por serem, em geral, resultantes de conflitos também esporádicos. No caso do bullying, o conflito gerador da agressão é o que menos importa. Muitas vezes não há nem situações disparadoras e sim provocações insistentes. Para ser considerada bullying, a agressão deve apresentar quatro características:
- a intenção do agressor em atingir o alvo;
- a repetição da agressão;
- a presença de uma plateia
- e a concordância da vítima com relação à ofensa.
Quando a vítima supera o motivo da agressão, ela reage ou ignora, desmotivando o agressor a continuar.
2- Quais as principais consequências que o bullying pode ter na vida da vítima? De que forma ele influencia e impacta a maneira que a vítima terá de controlar as suas emoções no futuro?
JF: Em geral as vítimas de bullying são crianças ou jovens com baixa autoestima, retraídos e apresentam alguma particularidade física (gordinhos, muito magros, orelhas salientes, etc.) ou comportamental (forma de andar, trejeitos exagerados, sotaques, etc.). Em função das perseguições e agressões, a vítima, em geral, se fecha, se isola. Enfrenta medo e vergonha de ir à escola, tem vontade de trocar de escola ou abandonar os estudos, não se acha capaz de integrar o grupo e acaba apresentando baixo rendimento. Esse contexto, pode levar a vítima a desenvolver uma personalidade insegura e silenciosa, além de autoestima baixa, não se achando merecedores de sucesso e prazer.
3- E quanto ao perpetrador do bullying, quais impactos esse tipo de atitude pode ter na vida adulta dele?
JF: São pessoas que, se não freadas ou contidas em suas atitudes, podem intensificar o comportamento agressivo e desenvolver a patologia de sentir cada vez mais prazer em fazer o outro sofrer (comportamento sádico). Podem, também, desenvolver a sensação de que são poderosos e acima do bem do mal, tornando-os arrogantes e extremamente resistentes a seguirem regras e aceitar limites.
4- Em uma entrevista para o site Alto Astral em 2016, você disse que os pensamentos mais comuns de vítimas de bullying se relacionam ao fato de terem que lidar com a situação sozinhos e com a sensação de que não vão conseguir. Como educador, qual a postura que se pode adotar para deixar os alunos saberem que podem confiar em você para ajudar a resolver conflitos?
JF: A postura de ouvir igualmente a todos, sem preferências ou tendências a apontar o certo e o errado. A atitude de sempre buscar a justiça e agir de forma coerente e equilibrada, revela aos alunos uma imagem justa e imparcial, o que facilita a construção da confiança. Outra atitude essencial é a observação dos comportamentos e a aproximação ao perceber alguma alteração comportamental. Isso faz com que o aluno se sinta individualizado, valorizado e sinta que pode confiar no professor.
5- Um dos temas da sua palestra é sobre poder e liderança em sala de aula. Você acha que uma das razões para o bullying se propagar é por que muitos professores ficam omissos ou tem medo de interferir na dinâmica da turma?
JF: Infelizmente sim. Outro dia recebi um vídeo pelo Whatsapp em que dois alunos se agrediam fisicamente em sala de aula, os colegas insuflavam a briga e o professor se mantinha inalterado, escrevendo no quadro. Aquela situação me fez pensar no quanto a omissão vem sendo usada como escudo por alguns professores para não se “envolver” com conflitos que, no fundo não sabem (ou não querem) como conduzir. Nesse contexto, cito, também, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e os Conselhos Tutelares como elementos inibidores da ação disciplinarizante de alguns professores que afirmam estarem cerceados de agirem na sala de aula, o que não é verdade. O ECA é um documento necessário numa sociedade que despreza a infância e a adolescência no sentido de coibir abusos e excessos. Os Conselhos Tutelares são órgãos a serviço das famílias e da escola e, ao contrário, tem como função apoiar ações disciplinares que desenvolvam sadiamente a personalidade de crianças e adolescentes.
6 – Em outubro de 2017 tivemos na mídia o caso do aluno do colégio Goyases que decidiu se vingar dos colegas após ser vítima de bullying. Quais os sinais que os pais e professores devem estar atentos para saber se a criança está sofrendo bullying?
JF: Dificilmente se detecta o bullying na escola. A rede de ameaças do agressor, a conivência dos expectadores e o medo da vítima se unem em prol do silêncio. É mais fácil detectá-lo a partir da família que convive mais proximamente e identifica comportamentos como dor de barriga na hora de ir para a escola, resistência em ir às aulas e pedidos para mudar de escola são comportamentos que frequentemente estão ligados ao fato da criança sofrer bullying. A escola precisa deixar claro para os pais que esses comportamentos devem ser observados e comunicados à escola. De qualquer forma, um professor atento consegue identificar mudanças sutis no comportamento das vítimas e com uma aproximação cuidadosa a ajuda pode acontecer. Já vi casos em que o adolescente saía de casa e não ia para a escola. Ao ser descoberto, a escola e os pais trataram o caso como um simples caso de “matar aulas” sem motivo.
7 – Ainda sobre o caso do colégio Goyases, você acredita que uma atitude como a tomada pelo estudante está somente ligada ao bullying, ou em casos extremos como esse, o bullying é apenas um fator de algo maior, funcionando mais como um gatilho?
JF: Não tenho informações detalhadas que me permitam analisar o caso. Pelo que sei, houve um somatório de bullying e atitude distorcida, fruto de valores distorcidos sobre como se resolver problemas. Acho que devemos ter cuidado para não tornarmos o bullying um super vilão para tudo que acontece na escola. Há muitos casos em que ele funciona como um gatilho para comprometimentos de personalidades patológicas.
8- Você acredita que uma mudança na metodologia de aprendizagem poderia diminuir o bullying nas escolas? Por exemplo, dar preferências por atividades educacionais que tornem o ambiente menos competitivo. Se sim, quais atitudes podem ser aplicadas?
JF: Eu creio que há uma relação direta entre ocorrência de bullying e tipo de metodologia de ensino adotada, mas é uma simples crença, pois não conheço estudos que a comprovem. Minha crença se baseia no fato de que metodologias ativas, como a pedagogia de projetos ou a aula invertida, por exemplo, colocam os alunos numa interação que facilita o desenvolvimento do respeito e da colaboração o que funciona como antídoto ao desenvolvimento de situações geradoras de bullying.
9- Em 2015 você escreveu um artigo para o jornal O Dia sobre a importância de educar as emoções. Você disse que essa é uma tarefa que precisa de um acordo claro entre família e escola, mas nem sempre os professores e os pais conseguem dar conta dessa tarefa, muitas vezes intensificando ainda mais o conflito ao invés de ajudar a solucionar o problema. Qual é a primeira coisa que um professor tem que ter em mente para aprender a lidar com essas situações estressantes em sala e ensinar os alunos a terem o controle emocional necessário?
JF: O primeiro pré-requisito para professores e pais desenvolverem competências socioemocionais em seus alunos e filhos e eles próprios as possuírem. Como disse no artigo, não são raros os pais e professores que fazem “pirraça” com seus filhos e alunos, posicionando-se no mesmo patamar de desenvolvimento socioemocional que eles e intensificando conflitos que deveriam ser encarados como oportunidades para o processo educativo. Uma vez preenchido esse pré-requisito, o professor precisa discutir e estabelecer coletivamente regras e atitudes e convivência. Os comportamentos “desviantes” precisam ser tratados de forma participativa, sempre tendo os “estatutos” como referência. É fundamental que o professor crie um contexto em que cada aluno se sinta comprometido com todos e não apenas com o professor.
10- Ano passado (2016) uma série de muito sucesso na Netflix foi 13 Reasons Why. Na série, a personagem Hannah comete suicídio e deixa fitas para cada um de seus colegas que de alguma forma assediaram ou fizeram bullying com ela, explicando como as atitudes deles impactaram sua vida. Você assistiu essa série? Se sim, qual foi a sua opinião sobre a forma com que ela retratou o psicológico de alguém que sofre bullying?
JF: Infelizmente ainda não assisti a série. Vi apenas algumas cenas em que ela descreve nas fitas o que sentia. Do que que vi, acho que corresponde de forma bem próxima ao que as vítimas de bullying sentem e sofrem.
11- Na época, muitos julgaram a série como algo importante a ser assistidos por pais e alunos, tanto para conscientização quanto como uma forma de mostrar a seriedade do suicídio (inclusive, os produtores do show comentaram que tomaram a decisão de incluir a cena da morte da Hannah para mostrar que suicídio “não é uma morte bonita”). Porém, ao mesmo tempo surgiram fortes críticas à série, dizendo que ela poderia servir de “gatilho” para pessoas já abaladas psicologicamente ou que sofrem de depressão. Qual a sua opinião sobre esse assunto? Como você enxergou a série? Recomendaria para pais e alunos assistirem ela?
JF: Acredito que o efeito profilático seja maior do que algum possível malefício. Pelo que sei, o teor realístico da série tende a mobilizar profilaticamente os jovens. As pessoas que sofrem de depressão e não se tratam podem ser influenciadas por situações, filmes, músicas e, principalmente pelos próprios pensamentos. Minha opinião se baseia em alguns estudos que mostram que filmes realistas sobre drogas provocam efeitos positivos no sentido da prevenção.
12- Por fim, qual é a recomendação que você daria para um professor ou pai que desconfia ou veio a saber que a criança está sofrendo bullying? Quais as primeiras atitudes a tomar?
JF: No caso do professor, aproximar-se do aluno e criar uma atmosfera de confiança para uma conversa franca. Ao se certificar do bullying, levar ao conhecimento da coordenação e direção, que, por sua vez deve mobilizar as famílias dos envolvidos. No caso dos pais, procurar ajuda imediata da escola no sentido de unir esforços na solução do problema. Tomar atitudes isoladas pode piorar o problema.
Foto: Felipe Franca